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por Filipe T. Moreira
Se me permitem, irei ousar intitular esta intervenção de “O
Sonho”.
Não sou um saudosista, nunca o fui, contudo mentia se
afirmasse não amar história: amo-a por defeito, é o que me diferencia do “peru”, e olhando para a história deste
país que comemorará o seu aniversário número 869 este ano, não se vislumbra um
período com tanta luminosidade como foi a Revolução de Abril.
Olhando de relance para esta sala, vejo que, dos que aqui
estão, muitos viveram Abril. Invejo-vos, com toda a sinceridade, invejo-vos! É
provável – seria hipócrita se não o referisse – que dos que aqui se encontram e
que testemunharam a Revolução de Abril, nem todos terão contribuído de igual
forma para essa alvorada luminosa. Isso fica, como é evidente, com a
consciência de cada um. Mesmo assim, invejo-vos. Invejo-vos pelo facto de terem
presenciado o período da nossa história em que a alegria coletiva era uma
realidade, em que a inauguração de uma democracia participada e verdadeiramente
representativa abriu um projecto de esperança para a vida de um povo.
Invejo-vos por terem vivenciado o momento em que esse povo quebrou as algemas e
conquistou a liberdade, exerceu-a, e conferiu-lhe o seu verdadeiro e amplo
significado. Foi, sem dúvida, um tempo de afirmação entusiástica e consciente
da defesa do interesse nacional. 25 de abril de 1974 assinala o início da
construção de um tempo diferente, um tempo novo, de direitos humanos, de paz,
de justiça social, de solidariedade com todos os povos e países do mundo. Foi o
tempo em que Portugal construiu a sua mais avançada democracia, porque
verdadeira democracia, porque verdadeiramente representativa dos interesses e
vontades da população. Uma democracia social, cultural, política, económica
altamente participativa, que viria a ser consagrada na constituição de 2 de
abril de 1976.
A nossa história contemporânea é marcada por períodos de 40
anos. O mais recente, que teve um dealbar tão belo, chega agora ao fim. É certo
que o Portugal de hoje tem muitas diferenças do Portugal de 1975, contudo, não
afirmo com a mesma convicção que o Portugal de 2015 seja muito diferente do
Portugal de 74.
Temos hoje governantes que se esqueceram do significado
etimológico de político, ou, o que
será ainda pior, deturparam-no, dando-lhe um novo e pervertido sentido,
passando agora a designar “aquele que serve os interesses dos grandes grupos
económicos nacionais e estrangeiros”. A serventia destes governantes que se
esqueceram do seu lugar na sociedade, levou-nos a nós, povo, ao caos, à perda
de soberania, ao empobrecimento, pois os do costume continuam a usufruir de
estratégias pouco claras para enriquecimentos pouco dignos.
Estes governantes, que têm usado e continuam a usar da
publicidade enganosa, da propaganda e do poder sobre os media para fazerem
assim valer as suas ideias, apresentando-se constantemente como os salvadores
da pátria, fazem de tudo para que se esqueçam as conquistas de Abril. É que
Abril é-lhes incómodo, e é-lhes incómodo porque foi liberdade no mais puro
sentido deste valor – direito à autodeterminação colectiva, garantia da
soberania política e económica, mas foi também direito ao trabalho com
direitos, foi direito à saúde, direito ao ensino, direito à segurança social,
foi a entrega da terra a quem a trabalha, foi a colocação dos setores
estratégicos fundamentais da economia ao serviço do país, foi a construção do
poder local democrático, foi a libertação de outros povos.
Os governantes que ao longo de mais de três décadas têm
tentado devastar as flores que abril semeou, tentam hoje, com as suas políticas,
construir uma sociedade que descarta os que não são úteis aos seus propósitos.
Uma sociedade em que o Homem não é o mais importante, em que o único valor reconhecido é o passível de
receber rating dos mercados. Para isso, contra todas as evidências, tentam incutir
aos trabalhadores, aos sindicatos, aos jovens, aos artistas, aos pensionistas, aos
reformados, aos desempregados e até aos doentes o ónus da culpa pelas
consequências desastrosas que anos de opções neoliberais não poderiam deixar de
acarretar.
A verdade é que no Portugal de hoje todos os valores e
conquistas de Abril estão em causa. Desde 1976 que temos assistido a sucessivos
ataques a estes valores, em reiteradas tentativas de “ajustes de contas” com a
memória colectiva da liberdade e da democracia. Ataques estes que se têm
intensificado na última década. É forçoso reconhecer que nunca se assistiu a um
tão desavergonhado ataque à escola pública universal e gratuita, ao serviço
nacional de saúde, ao poder local democrático, à dignidade do povo português,
aos direitos dos trabalhadores, à liberdade e à própria democracia.
Muitos dirão que o projecto de Abril era uma ambição
exagerada, utópica, inexequível. Que vivemos “no melhor dos mundos possíveis”,
dadas as circunstâncias. Dirão, talvez, que o único caminho possível é este,
que não há outro. Pois a todos eles deixo, nesta manhã de 25 de Abril, uma
palavra: observemos o rosto da Europa, hoje, e perguntemo-nos se nos
identificamos com o que está a ser construido. Um sistema inteiramente absurdo
e irracional baseado na submissão das instituições políticas às agências de
crédito, um conceito de nacionalidade resumido à visão anquilosada e insana do
contribuinte sem direitos, um Estado-nação abandonado ao mais selvagem e
inumano individualismo, com cada país a curvar a espinha até só contemplar
apenas o seu umbigo, numa campanha delirante e clamada em uníssono pelo
“aumento das exportações” e pela quebra das importações, que, sendo assumida
por todas as partes, resultará finalmente numa roleta-russa que poderá
potencialmente levar ao colapso económico da Europa, uma Europa onde se
acentuam as desigualdades sociais e económicas, como vêm revelar os estudos
mais recentes, onde a tensão, por esse motivo, atinge níveis sem precedentes,
onde milhões de pessoas se encontram condenadas a viver sem qualquer horizonte
de esperança, amarradas a um modelo económico que lhes nega qualquer gota de
estabilidade, negando-lhes, assim, o direito a uma família, a um lar, uma vida,
enfim, à própria alegria, roubada em nome de “ajustamentos estruturais” que, a
continuarem por este caminho, nos levarão a todos à mais humilhante degradação,
ou mais fundo ainda. Este modelo, o actual, é que é, sim, inumano, delirante e
insustentável, não o de Abril. Esta Europa é que é a Europa impossível, a
Europa inexequível, que nega os valores de solidariedade, democracia,
auto-determinação e amizade entre os povos que justificaram sempre a sua
existência pacífica. Esta Europa, e este país, que vivem o capitalismo
financeiro na sua deriva especulativa como natural, são a mais ameaçadora
negação da realidade, a mais terrível aporia da história contemporânea, porque
nos conduz a um ponto sem futuro, à rua sem saída do colapso e da aniquilação
das instituições democráticas e soberanas: esta é a Europa, não da utopia,
ainda que impossível, mas da mais inusitada distopia que poderíamos ter
construído! Uma Europa que não sobreviverá a si mesma, se persistir em roubar
aos trabalhadores os mais elementares direitos para uma vida digna.
É neste contexto que o 25 de Abril merece, hoje, ser
assinalado com especial veemencia: ele representa o projecto de crescimento, de
democracia avançada, de futuro sustentável que um dia ousámos desejar. E que
este ano, pela primeira vez em longo tempo, celebramos na ausência de alguns
dos mais altos valores que dele nasceram. Hoje, assinalamos este dia sob o peso
da subserviência aos representantes dos mercados financeiros, esmagados pela
perda da soberania, com plena consciência de que é à finança especulativa, a
mesma que foi responsável e inteiramente responsável pela grave crise financeira
que se abateu sobre os países ocidentais após 2008, que estamos a obedecer, e é
a ela, única responsável pela crise que hoje enfrentamos, que o governo tenta
agradar com os intoleráveis sacrifícios que impõe aos trabalhadores e ao povo.
Extraordinário paradoxo! O carrasco de ontem é o médico de hoje, e o avaliador
de amanhã!
Talvez se justifiquem, neste contexto, as palavras que nos
trouxe recentemente o comunicado “Abril
não desarma”, da Associação 25 de Abril: “A linha política seguida pelo
atual poder político deixou de refletir o regime democrático herdeiro do 25 de
Abril configurado na Constituição: o contrato social estabelecido na
Constituição da República Portuguesa foi rompido pelo poder”, uma vez que
"as medidas e sacrifícios impostos aos cidadãos portugueses ultrapassaram
os limites do suportável", pelo que se impõe reconhecer "ser
oportuno tomar uma posição clara contra a iniquidade, o medo e o conformismo
que se estão a instalar" no País, concluíndo: "O poder político que
atualmente governa Portugal configura um outro ciclo político que está contra o
25 de Abril, os seus ideais e os seus valores”.
Quando terminar esta intervenção, ficarei seguramente com a
sensação de que há ainda muito para dizer. Mas parece-me que este não é o tempo
de falar, mas sim tempo de agir, de fazer. Não de fazer o que a opressão
estrangeira ordena pelos seus vários meios, não de fazer o que governantes
exigem que façamos contra os interesses do próprio país e do povo, mas tempo de
fazer o que é preciso fazer para libertar Portugal das amarras que nos levaram
a esta situação de afogamento – afogamento este que é, antes de mais, um
afogamento democrático.
Para terminar dedico estes minutos com que martirizei alguns
de vós a todos os “Ginetos” e “Gaitinhas” tão bem representados em “Esteiros”
de Soeiro Pereira Gomes e que novamente brotam, pois um dia serão eles a fazer
cumprir Abril e a Constituição.
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