(Reunião Extraordinária de 11.11.2011)
Ponto 3, “Construção do CCTAR – Centro de Criação de Teatro e Artes de Rua; autorização da repartição de encargos”
O tempo e o modo
Gostaria de saudar, em nome da CDU, o resultado do trabalho dos técnicos responsáveis pelo projecto arquitectónico hoje apresentado para o Centro de Criação de Teatro e Artes de Rua de Santa Maria da Feira. Pela ousadia, pelo grau de inovação, pela potencial funcionalidade, e pelo valor estético, não podemos deixar de sentir a forte impressão que o modelo conceptual promove.
Sem embargo deste reconhecimento, o nosso dever de representação impõe-nos, aqui, exigências de responsabilidade política que nenhum de nós deve permitir que sejam ofuscadas pelo natural brilho de que se reveste esta apresentação. Apresentação que, é bom lembrar, foi reiteradamente solicitada desta tribuna pela CDU, desde há mais de um ano, e que nos congratulamos de ver, finalmente, levada a efeito.
Não podemos, porém, deixar de lamentar a forma como nos é trazido aqui este “projecto”. Pedimos uma apresentação pública, e deram-nos, hoje, conta de um plano já inteiramente definido, fechado, ultimado. Para que querem, afinal, ouvir os eleitos desta Assembleia? Será que, no entender do Executivo, esta Assembleia serve apenas para autorizar a repartição de encargos? Lamentavelmente, não há muita diferença entre isto que hoje aqui se passou e ver a obra concluída, in loco. Assinalamos com pena que este Executivo insiste na insensibilidade à opinião dos cidadãos, das colectividades, das forças democraticamente eleitas para representação dos munícipes, e não podemos deixar de nos sentir lesados por isso.
Mas, talvez mais premente do que isto, será ponderar a adequação deste projecto às circunstâncias actuais. Numa altura em que a palavra de ordem é a contenção e a racionalização de meios, o timing para este projecto não podia, a nosso ver, ser pior. E entendamo-nos: não defendemos, pela nossa parte, nem nunca foi essa a nossa postura, o congelamento do investimento e a suspensão da iniciativa pública porque a troika estrangeira vem agora dizer que andamos a viver acima das nossas possibilidades. O que não nos parece sensato é embarcar num plano de demolições no centro da cidade, rumo a um plano ambicioso de construções de raiz. Quando não se percebe, em rigor, qual o volume de públicos e a oferta associativa e cultural disponível, esta aventura parece-nos ainda menos justificável. Quando proliferam, pelo concelho, os elefantes brancos, é de mau tom a Câmara embandeirar em arco e seguir adiante, debaixo dos apelos que chamam a atenção para o facto de que o rei vai nu. Não sabemos que planos há para o Europarque. Não nos dizem o que pensam fazer com o edifício desactivado do Tribunal. Os planos que existiam para o antigo Matadouro, e que justificaram investimentos na infraestrutura, parecem agora não interessar a ninguém. Já chega de tiros mal calculados.
Hoje, como nós há muito defendemos, o imperativo categórico deveria ser o da reabilitação urbana: reabilitar, potenciar estruturas existentes, requalificar património edificado, maximizar a capacidade de crescimento das estruturas físicas e dinâmicas humanas disponíveis. A pergunta que, em nosso entender, nos deveríamos, todos sem excepção, colocar, é: o que seria possível fazer com estes um milhão, cento e vinte e cinco mil euros que a Câmara terá que desembolsar, sem demolir património, aproveitando o Cine-teatro António Lamoso, e ainda, porque não, as instalações em breve desocupadas da Escola EB1 do Montinho? Que boas práticas de reciclagem arquitectónica seríamos capazes de implementar aqui, explorando a criatividade da equipa técnica desta Câmara Municipal? O que conseguiríamos fazer com esta verba ou até com verba menor, sem a necessidade de recorrer ao QREN, e recusando este exercício de apagamento de uma parte significativa da memória física da cidade, que é o que representa a demolição do Cine-teatro?
Outro executivo, com outras prioridades e outros horizontes, procuraria estimular a criatividade técnica ao serviço da requalificação do património. Outro executivo, e o Cine-teatro seria considerado uma obra “vintage” a preservar e reabilitar, integrado, porque não, no cenário da pedreira das Penas devidamente intervencionado e convertido em espaço de lazer, como este projecto prevê (e bem). Não esta Câmara, não este Executivo.
Bastante revelador deste hábito de dar um passo maior do que a perna, ou, se preferirem, de colocar a carroça à frente dos bois, é o facto, pouco referido, de não existir nenhum documento programático subjacente às projecções gráficas multimédia que fazem as apresentações do projecto. É sintomático de um certo vazio de ideias que não haja, tanto quanto nos é dado saber, uma identificação rigorosa dos objectivos deste projecto, das linhas orientadoras da programação a realizar, nem sequer um plano fundamentado de metas e meios, ao nível cultural e artístico, que justifiquem e legitimem este espaço. Não nos iludamos: eventos como a Viagem Medieval ou o Imaginarius são acontecimentos pontuais (tão pontuais, que chegaram a propor realizá-lo de dois em dois anos). Outra coisa, muito diferente, é estruturar um calendário permanente de espectáculos, residências artísticas, dinamização de projectos de intervenção. Nada disto é de geração espontânea: exige um trabalho exaustivo de preparação, um período de incubação demorado e auto-reflexivo, uma consolidação de objectivos e de públicos bastante séria e responsável. Outros municípios, com muito menos investimento em infraestruturas, vêm desenvolvendo um trabalho bem mais permanente na área cultural do que aquele que serve de mote a este projecto. Não queiramos começar a construir esta casa pelo telhado.
E, para nós, sobram paradoxos aparentemente irresolúveis. Ao que tudo indica, há dificuldades financeiras que condicionam a construção do Centro Escolar da Feira, mas não haverá falta de dinheiro para o CCTAR. Como serão coordenadas as datas de construção do CCTAR com a demolição da EB1 do Montinho, e para onde irão os alunos, caso a escola seja demolida antes da conclusão da construção do Centro Escolar da Feira? Ou ainda os problemas estruturais nos acessos e a elevada probabilidade de criação de problemas de tráfego no centro da cidade, com a afluência de trânsito a ruas demasiado estreitas, com circulação excessiva e incapazes de fazer escoação do trânsito.
E é curioso notar como foi cuidadosamente evitado o tema do centro comercial do grupo Sonae a nascer associado a este projecto – salvo que entendermos que o “intercâmbio e consumo de projectos criativos” que surgia referido num dos slides fazia referência à inventividade comercial da Sonae, que lhe permitiu, pelo visto, disfarçar uma superfície comercial num projecto artístico e cultural. Mas o que dirá este Executivo aos comerciantes do centro da cidade, para lhes explicar a decisão de permitir que se instale ali, no coração da Feira, uma loja do grupo Sonae? E que contrapartidas exigiu a Câmara, face a uma concessão com a atractibilidade desta? Permita-nos, a Câmara, uma sugestão: porque não, a título de contrapartida, e tendo em vista introduzir um elemento de justiça em todo este processo, exigir da Sonae que financie a reabilitação do Mercado Municipal? Não iriam, com toda a certeza, ficar prejudicados na sua iniciativa...
Não podemos, também, permitir que passe despercebido o desajustamento deste projecto às necessidades das associações locais. Qual a mais valia de um espaço cujo auditório tem uma capacidade de cerca de 600 pessoas? A verdade é que o município precisa de salas mais pequenas. As mais de duzentas associações do Concelho vão continuar sem dispor de uma sala adequadamente dimensionada às suas necessidades.
E, repetindo a pergunta que foi oportunamente levantada pelo jovem na sessão de apresentação deste projecto, quanto terão que pagar os artistas e criadores do concelho para usufruir das valências destes espaços?
Gostaríamos ainda de saber qual a entidade que se prevê que venha a gerir esta estrutura, e quantos postos de trabalho se prevê que possam ser criados mediante este investimento superior a um milhão de euros.
Muitas perguntas que adivinhamos que venham a ficar sem resposta. Infelizmente, começa a parecer-nos que este projecto é como um veleiro no interior de uma garrafa de vidro. Ao princípio, fascinante. Depois, pouco mais do que inútil.
Por fim, e em face de todos os considerandos expostos, entendemos que, sem prejuízo do mérito intrínseco deste projecto, esta não é a decisão política mais responsável, tampouco a mais coerente. A Câmara não soube declinar da melhor forma o tempo e o modo, e nós não iremos contribuir para uma conjugação enviesada.
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