quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Opinião - A Idade Moderna

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«Fizemos o 25 de Abril sem quase disparar uma bala, insistem na cavaqueira, mas houve alguém que tomou por nós esse caminho libertador, deixando para a história fininha dos factos a foto de uma criança e um cravo ao lado de uma G3.

Do futebol nem se fala, temos até uma geração de ouro que nunca ganhou coisa alguma depois do brilho da sua juventude. Mas, a banda continua a troar com os bombos das palavras e das tiradas que não servem para nada, a não ser definir a idiossincrasia da idiotia nacional lusa.

Há uns anos atrás, miúdo espigado, vi, à saída dos noivos da igreja num casamento de província, ser lançado ao ar e para o terreiro fronteiro à escadaria, mãos cheias de rebuçados baratos que os miúdos saloios acorreram a confiscar, por entre a poeira levantada. Deu em sarilho, pois os miúdos da cidade vestidos a preceito para o casório quiseram imitar os da terra e ficaram sujos para a boda.

A zaragata instalou-se logo ali, casacos ao chão e mangas de camisas arregaçadas, até que o padre serenou os ânimos à frente da casa de Deus. Guardei durante décadas esta imagem de um Portugal rural, tradicional, onde o costume faz lei e canga. Continuamos assim.

Quando o chefe do governo em exercício nos diz, depois de todos os disparates que fez com o dinheiro dos contribuintes, por decisão ou omissão, que é um imperativo nacional o emagrecimento forçado a que esta nação se vê sujeita, vinte e cinco anos depois de termos aderido ao clube europeu, a culpa ou a responsabilidade não podem morrer solteiras e cobram direitos de autor: nesse clube europeu, por entre sorrisos fotogénicos, fomos sempre os da cauda miserável e pedinte; recebemos as ajudas estruturais que pouco serviram para dotar o país de um novo destino fora da tradição; deixámos enriquecer uns poucos, criando uma classe política partidária e seus associados corporativos (advogados, médicos, engenheiros, banqueiros), que enriqueceu e se distanciou da razão da nação em proveito próprio, desenhando uma nova Idade Média Moderna com servos da gleba sujeitos ao espoliar contínuo por via dos impostos.

A carga é tão grande como se fossemos suecos, para indivíduos e empresas, levando à natural contracção económica que uma globalização desenfreada potenciou. Não deixa de ser caricato o léxico usado para invocar e enaltecer o crescimento dessas ‘novas potências económicas emergentes’, salivando pelas suas taxas de crescimento baseadas no trabalho escravo, a sobrevivência pura, dobrada sobre os queridos direitos humanos que andam pela rua da amargura, assobiados na descontracção dos negócios. Se calhar, não devíamos nem podíamos ser tão globais, só porque a Coca-cola e a Mercedes ansiavam por novos mercados.

Assim, como na Idade Média, que nunca nos tocou verdadeiramente por causa dos Pirinéus e dos reinos de Espanha, somos forçados a novo e dramático aperto só porque alguém fez disparate, democrático, com o pecúlio nacional. Sem rei nem roque, estamos no pior que a democracia proporciona quando a mediocridade toma assento na governação e se acha impune, eleita e sufragada pelos poucos que votaram.

A democracia parlamentar é, como se sabe, o melhor dos piores sistemas, constatação cínica há muito inscrita nos rodapés da história. Talvez tenha chegado a altura de mudarmos para outro sistema mais eficaz, que penetre e interesse a crescente faixa abstencionista, também causa directa do estádio em que nos encontramos, um novo regime que responsabilize os gestores temporários da causa pública, que criminalize os seus actos, onde o escrutínio das acções governativas seja imediato como todo o nosso mundo de hoje é, digital e global.

Como outrora os reis e a nobreza detentora de terras e prerrogativas, o governo de Portugal avançou com novos impostos, cortes a torto e a direito, mantendo a gorda teta do Estado no esbanjamento para coisa nenhuma, mais de 14 mil organismos dela dependentes onde se acolhe, como fungo teimoso, a clientela partidária e seus dependentes.

Pouco do que é anunciado nos interessa, no presente e no futuro carregado que vem aí; o que fica é o anúncio, a diversão, o momento de uma ilusão que as agências de comunicação produzem para os governantes, tudo pago por nós. O que resta, depois, são os ecos, os últimos ecos, até novo anúncio que chute a realidade mais para a frente e novo fôlego assim, para eles, esteja criado.

Quantos destes anúncios de salvação que o governo e o seu primeiro porta-voz disparam por dia serão concretizados e quem se vai lembrar disso mais tarde? Governar é iludir, nos tempos que correm, salvar a pele, criar culpas alheias, polarizá-las até ao enjoo: há sempre por aí um inimigo obscuro que nos quer sacanear, e quem anda distraído gosta de ‘grandes e obscuros culpados sem rosto’. Disto estou farto, mas não sei se estamos enquanto nação.

A entrada do FMI em Portugal será dolorosa, mas terá uma eficácia: o plano de austeridade não pactuará com os truques desta ou doutra governação, desta incapacidade para a verdade dos factos, os rabos-de-palha, o ilusionismo, doa a quem doer. O governo do momento em Portugal não o quer, ninguém quer governar sob decisões externas, mas, sobretudo, o que os amedronta é a descoberta das engenharias financeiras que emagreceram o défice público por artes mágicas, pompa e circunstância. Onde estão as contas das PPP, dos institutos, das empresas públicas e municipais? E onde entra o buraco nacionalizante do BPN?

Habituámo-nos a ler os piores augúrios sobre o futuro próximo que chega a cada dia. Vemos com perplexidade que essas análises negativas são recusadas pelo governo, usando retórica contorcionista, valorizando antes, aqui e ali, um pequeno índice positivo de paternidade difusa. Diz a sabedoria ancestral que o pior cego é aquele que não quer ver. A um governo exige-se visão e capacidade para antever.

A nação segue o mesmo rumo autista: ouve-se em cada mesa a mesma invocação que ora pelo regresso ao passado, um milagre, uma solução que nos permita voltar ao antes. Se o bom exemplo não vem de cima, como é que se há-de esperar que os súbditos mudem os maus hábitos?

A solução é, outra vez, mais impostos: mata-se o consumo, mata-se a capacidade de investimento das empresas, encolhe-se a economia, sobe o desemprego, as regalias adquiridas esfumam-se porque não há como sustentá-las. Os preços sobem diariamente nos combustíveis, o que agrada muito ao governo e aos accionistas das empresas dominantes. Como o país não pode parar, o IVA dos combustíveis faz o trabalho de arrecadar dividendos imediatos.

Seguimos à deriva, de medida em medida, sem rumo político que arregimente uma nação para a ‘economia de guerra’, que é disso que devíamos tratar no ponto a que chegámos: sem vaidades viver com o que temos, produzir o que comemos (evitava-se uma importante saída de divisas), libertar a carga tributária para quem apostar no empreendimento, na excelência, nas marcas – mais do que incentivos estatais o que é preciso é menos impostos.

Podíamos ser o país do turismo europeu da excelência, já aqui o escrevi; podíamos incentivar o regresso aos campos e às pescas, fornecendo a excelência ao turismo, como acontece com os vinhos, exportando o que a natureza nos oferece com Sol amigo e chuva moderada. Preferimos, como se sabe, falar de tecnologia e TGVs, de pasta de papel em vez de searas; preferimos a ilusão à realidade concreta, em nome de um modernismo bacoco e provinciano, à medida do mensageiro.

Há quem, vergonhosamente, fale do sucesso da venda da dívida soberana que gerações atrás de gerações terão que pagar sem se saber como, com taxas de juro que só nos podem conduzir para o precipício onde os especuladores gostam de encostar as carcaças devedoras como nós.

Num país que cresceu ao longo da última década a uma taxa anual média de 05%, pagar taxas de quatro, seis ou sete por cento pela venda dos títulos nacionais é o mesmo que condenar uma nação ao empobrecimento continuado se um milagre não entrar em cena: não consta que haja na história da civilização humana algum milagre assim. Ou talvez haja. Se quem trabalha se sujeitar à escravidão que vigorava na outra Idade Média.»

António Manuel Ribeiro, músico e compositor dos UHF.

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